Algumas acepções equivocadas, e às vezes até mesmo preconceituosas, sobre o RPG foram e vêm sendo feitas, e busco, nesse capítulo, comentar algumas delas.
Em primeiro lugar, o RPG não é um vídeo-game e nem se joga no computador. Conforme relatei anteriormente, o jogo é realizado ao redor de uma mesa, mas pode ser no chão, em cima da cama, num carro, em qualquer lugar onde pessoas possam se reunir. Nos primórdios do RPG, como era difícil reunir pessoas interessadas no jogo, muitos jogadores jogavam por correspondência, criando o estilo que se chama play-by-mail, ou jogar-por-carta (PBM). Atualmente, com o advento da internet, o PBM se modernizou e virou play-by-email, jogar-por-email (PBEM) e funciona da mesma forma que os RPG tradicionais, também chamados de RPG de mesa ou tabletop : há um mestre que narra as aventuras e o restante dos jogadores define o que farão a seguir, por carta ou por correio eletrônico.
Outra modalidade que surgiu nos anos 90 com a linha de RPG Storytelling é a que se chama Live Action. Nessa modalidade, ao invés de os jogadores participarem de uma aventura ao redor de uma mesa, eles realmente se vestem conforme seus personagens, e executam as ações, ao invés de descrevê-las, ou seja, ao invés de dizer: “meu personagem vai abrir a porta”, o jogador vai até a porta e abre realmente. O Live Action aproxima-se muito mais do teatro improvisado. As partidas costumam acontecer em casas, sítios, salões ou outros lugares que possam acomodar muitas pessoas, já que, diferentemente do RPG de mesa, onde um bom número de jogadores varia de 4 a 7 pessoas, no Live Action, pode haver até mais de 100 pessoas. A figura do Mestre permanece, porém, não mais contando a história. Depois de atribuir as missões de cada personagem, o Mestre só verifica se há algum problema nas ações dos personagens. As interações são livres, e a intervenção do Mestre só ocorre quando é preciso averiguar algo relacionado às regras ou à história.
Os livros-jogos, aventuras-solo ou livros-interativos não se configuram como RPGs. Exatamente como uma de suas denominações, são livros em que o leitor joga uma aventura sozinho, e toma decisões a cada página. Por exemplo, o texto diz: “você encontrou uma bifurcação. Se quiser ir pelo caminho da direita, vá para o parágrafo 23. Se quiser tomar o caminho da esquerda, vá para o parágrafo 47”. O RPG é uma história coletiva, e não individual, onde a aventura vai se desenrolando conforme as decisões do grupo de jogadores.
Os card games, ou jogos de cartas, como Magic: The Gathering, Spellfire, Pokémon, Yu-Gi-Oh entre outros, também são confundidos com RPG. O que os fazem ser encarados como RPG é o fato de terem uma ambientação, ou história, que funcionam como pano de fundo para o universo do jogo. Entretanto, esses jogos de cartas são competitivos, um jogador precisa derrotar o outro para se tornar vencedor. O RPG é um jogo cooperativo, não há vencedores ou perdedores. É através da combinação de esforços, aliada às habilidades dos personagens, que os jogadores vencem os obstáculos propostos pelo Mestre do Jogo, que também não compete contra os jogadores, e tem a função de proporcionar momentos de diversão a todos.
Apesar do RPG ser originado dos jogos de miniaturas, e alguns rpgistas as utilizarem para melhor visualizar as batalhas, tais artifícios não são essenciais. O jogo tem como palco sempre a imaginação dos jogadores, sendo que nenhum recurso visual é necessário. Obviamente, imagens, músicas e outros elementos podem ser úteis para que seja criada uma atmosfera diferenciada para o andamento da partida.
Seguidamente, os rpgistas têm que se confrontar com alguns questionamentos, tais como se o RPG é violento, se é o responsável por alguns assassinatos que ocorreram recentemente e se os jogadores de RPG são satãnistas. Essas perguntas, por si, só, são responsáveis por discussões infindáveis. Porém, devemos salientar que há muita confusão por parte da mídia, desinformada e sensacionalista, responsável pela má-fama e preconceito contra o RPG.
O RPG não é nenhum ritual nem culto satânico. Os rpgistas formam um grupo como outro qualquer, como uma torcida organizada por um time de futebol, ou um fã-clube de um artista. Alguns jogadores podem ser confundidos com cultistas ou satãnistas devido à temática de alguns jogos de horror, mas isso não passa de pura ficção, faz-de-conta. O que se propõe é um divertimento sadio com amigos ou pessoas interessadas no assunto, usando a imaginação e nada mais. Não se pode confundir personagem com jogador. Os jogadores não pensam que são os personagens, eles somente dizem o que esses fariam dentro do mundo do jogo. Terminada a sessão, os personagens são deixados de lado.
É certo que existem combates nos jogos de RPG e a morte de personagens – e não de jogadores – é constante. Mas é preciso esclarecer que isso é herdado dos jogos de miniaturas, que simulavam batalhas entre exércitos. Nem por isso os jogos de RPG podem ser considerados violentos, pois o que se incentiva é a interpretação, a cooperação, a coletividade, o bem do grupo. Como as aventuras geralmente têm um apelo heróico, lidar com a questão da morte é comum, e é encarada com trivialidade, pois, ratificamos, não passa de uma brincadeira que ocorre na imaginação.
Porém, o RPG não é o responsável pelas mortes que ocorreram no Brasil e anunciadas pela mídia de maneira bombástica, associando o jogo às mortes. Gary Gygax, em seu livro “Role-playing Mastery”, afirma que os críticos parecem omitir ou negligenciar o fato de que assumir comportamento violento é uma válvula de escape para certas tendências da humanidade. Não podemos negar que vivemos num mundo que, comprovadamente, é violento. A história da humanidade é repleta de lutas, guerras, mortes e destruição.
Alfeu Marcatto em “Saindo do Quadro” afirma que estatísticas mostram que os maiores índices de violência ocorrem nos grandes centros e, principalmente, nos segmentos menos abastados da população. Pode-se, seguramente, afirmar que as desigualdades sociais, os preconceitos raciais, a competição exacerbada em busca da sobrevivência são responsáveis por criarem um ambiente favorável para comportamentos violentos.
Em todos esses casos de violência , era preciso achar um culpado para as mortes, e obviamente, isso recaiu sobre o RPG. Não é o RPG que aperta um gatilho, que esfaqueia alguém ou detona uma bomba. Por trás de tudo isso há um ser humano, responsável pelos seus atos, possivelmente cheio de conflitos internos. Se essas pessoas possuem alguma psicopatologia, não será o RPG o único elemento capaz de instigar um comportamento violento: bebidas, drogas, decepção amorosa, etc. também são fatos a serem considerados. Sempre há a necessidade de se encontrar um bode expiatório, e o RPG tem sido vítima de pessoas desinformadas, que não entendem a essência do jogo.
Alfeu Marcatto comenta em seu livro que a tensão do dia-a-dia e dos problemas que vivemos vai se acumulando de tal forma que essa pressão interior precisa encontrar uma saída, e segue dizendo que “não temos um instinto de violência. Temos sim, um instinto poderosíssimo de autodefesa, que utiliza nossa capacidade agressiva como uma arma.” Ou seja, o ser humano procura um meio para liberar seus medos, tensões e problemas, e geralmente o faz pela busca de atos de violência.
Voltando à questão do RPG ser violento, isso depende muito da abordagem que se quer no jogo. Um bom Mestre, que é o condutor da partida, deve saber dosar esses elementos para que não suscite dúvidas com relação à sua prática e objetivo.
Alfeu Marcatto comenta que “o RPG é um excelente instrumento para abordarmos, na fantasia, aspectos da realidade que queremos compreender melhor. Permite a simulação de situações num ambiente protegido, imaginário. Possibilita que a criança e o adolescente tenham contato com suas tensões interiores e a extravasem, abrindo caminho para uma consciência e um entendimento que garantam melhores condições para lidar com os problemas da vida […]”.
Muitos esportes são comprovadamente mais viris e violentos que o RPG. Basta que lembremos quantas pessoas morreram em estádios de futebol em brigas de torcidas organizadas, e nem por isso se tenta proibir ou coibir esse esporte.
Acreditamos que o que se escreve sobre RPG nos jornais é sensacionalismo barato de uma mídia desinformada, pois não há o que temer a respeito desse jogo. Gary Gygax demonstra em seu livro que, embora estudos definitivos sobre o assunto não estejam disponíveis, evidências apontam para o fato de comportamento agressivo e violento ser menor entre participantes de RPG. Dois relatórios que ele analisou afirmam que tal comportamento entre jogadores de RPG é de cinqüenta a duzentas vezes menor do que na maioria da população.
As pessoas que jogam RPG claramente compreendem que os conflitos e violência existentes nas aventuras não passam de ficção, simulações, e que não devem ser utilizadas como desculpas para seus comportamentos fora do jogo. Os praticantes conscientes deste hobby sabem diferenciar os limiares que separam ficção e vida real, e buscam, em sua imaginação e na companhia de amigos, um pouco de diversão sadia.